A China e os Direitos do Homem (esquecidos)

O mundo é mais complexo do que o modo como o representam os dogmáticos de todas as cores e é nessa diferença que reside a nossa esperança de evitar a catástrofe eminente.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adoptada pela ONU em 10 de Dezembro de 1948 (A/RES/217). Esboçada principalmente por J. P. Humphrey, do Canadá, teve no Dr. P.C. Chang, representante da República Popular da China_RPCH e das posições dos países asiáticos, o principal mediador dos consensos estabelecidos nos seus 30 artigos.

Num período de profunda crise das democracias e das economias ocidentais, tais direitos são frequentemente reduzidos às denominadas “liberdades políticas” e a opinião pública mobilizada para focalizar na China a ausência desses direitos democráticos fundamentais. Alimentam esta censura a situação do Tibete e a atribuição do Prémio Nobel da Paz ao dissidente Chinês co-autor da chamada Carta O8.

Os Direitos do Homem (esquecidos)

No que respeita ao conjunto dos 30 artigos, as nossas democracias ocidentais deixam muito a desejar no seu cumprimento. Vale a pena citar dois destes artigos:

“Artigo 23°

  1.  Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o desemprego.
  2.  Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual.
  3.  Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de protecção social.
  4.  Toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se filiar em sindicatos para defesa dos seus interesses.
    Artigo 25°
  5.  Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.
  6.  A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimónio, gozam da mesma protecção social.”

Analisemos sumariamente a evolução destes direitos na China:
A revista americana Time de 28.09.09 dedicou à China a sua capa e publicou um quadro comparativo da nação chinesa, antes e depois da República Popular, fundada em 1 de Outubro de 1949:

A população, que era de 542 milhões, cresceu para 1.300 milhões de cidadãos. A esperança de vida passou de 36,5 para 73,4 anos. O rendimento per capita elevou-se de 51 dólares para 2.770. As “foreing-exange reserves”, anteriormente inexistentes, elevaram-se até 2 “triliões” de dólares, as maiores do mundo. O número de estudantes no ensino superior passou de 112.000 para 2.200 milhões, em cada ano lectivo. O analfabetismo, que atingia 80% da população, praticamente foi erradicado e o ensino básico e secundário abrange hoje 206 milhões de jovens. A mortalidade infantil caiu de 1.500 para 34,2 por 100.000 nascimentos.

O Tibete e o seu povo

Regressemos ao Artigo 4° da Declaração Universal:
“Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos.”

É neste contexto que se inscreve a questão do Tibete, na qual nos deteremos um pouco mais:

Em 23 de Maio de 1951, em Pequim, os delegados do governo central e local assinaram o Acordo dos 17 Artigos, reconhecendo a unidade da China e a autoridade do governo popular sobre todo o território nacional, comprometendo-se esta a manter os governantes e as instituições do Tibete até que fosse negociada a reforma democrática pacífica da região, acordo apoiado pelo décimo quarto e actual Dalai-Lama.

Em 1954, o Dalai-Lama participou na primeira Assembleia Nacional Popular da China, a qual elaborou a Constituição da República Popular, tendo sido eleito como um dos vice-presidentes do Comité Permanente dessa Assembleia. Em 1956, assumiu a presidência do comité organizador da Região Autónoma do Tibete.

Desde essa data que o Tibete viu consignados na Constituição Chinesa o respeito pela sua língua, cultura, costumes e crenças, inclusive o budismo tibetano.

O conflito ressurgiu quando se iniciou a reforma democrática do Tibete, com a separação entre  a religião e o Estado laico, as medidas de abolição da servidão rural e da escravidão doméstica e, sobretudo, a distribuição de terras e rebanhos aos camponeses tibetanos até então sujeitos a um anacrónico feudalismo dominado pelos aristocratas e pela camada superior dos monges.

Caracterizemos brevemente este Tibete, idealizado pelos romances e pela filmografia ocidental:

Segundo o censo de 1959 ( e leia-se a biografia do actual Dalai Lama para confirmar este quadro), os monges da camada superior e a nobreza  representavam 5% da população; 400 famílias repartiam entre si a quase totalidade das  terras agricultáveis e rebanhos: o governo local detinha 38,9%; os mosteiros, 36,8%; a aristocracia, 24%. Aos pequenos camponeses cabiam os 0,3% restantes. Os servos, 90% da população, eram forçados a pagar aos nobres e mosteiros uma corveia ou renda em trabalho, uma renda em produtos, e às vezes em dinheiro, além de pesados tributos e taxas em serviços e em numerário. Sem recursos suficientes, pediam emprestado aos nobres e aos mosteiros, pagando elevados juros. Se morriam sem saldar a dívida, ela passava aos descendentes ou aos vizinhos. Para os escravos, 5% da população, ficavam os serviços domésticos e públicos mais pesados, como a limpeza, o despejo de fezes, o transporte de carga e o transporte de nobres e funcionários, em liteiras ou nas próprias costas. Servos e escravos podiam ser trocados, doados, emprestados ou mesmo vendidos. Para os pobres, não havia hospitais, nem escolas. Os monges da camada superior e os nobres mais influentes repartiam os cargos políticos. A Seita Amarela, do Dalai-Lama, era privilegiada em relação às outras seitas e o budismo tibetano, em relação às demais religiões.

Carta O8

A análise da Carta 08, cuja autoria é atribuída ao Nobel da Paz deste ano, Liu Xiaobo e que estaria na base da sua condenação em 2008 pelo Tribunal Popular da China, tem-se centrado no Ocidente na área das suas reivindicações de mudança do sistema político, preconizando a evolução da China para o modelo de democracia ocidental.

Mas, manda o método e o rigor das ciências políticas, que se parte sempre da avaliação das  propostas de economia política. Transcrevemos aqui o seu núcleo fundamental:

“We should establish a Committee on State-Owned Property, reporting to the national legislature, that will monitor the transfer of state-owned enterprises to private ownership in a fair, competitive, and orderly manner. We should institute a land reform that promotes private ownership of land, guarantees the right to buy and sell land, and allows the true value of private property to be adequately reflected in the market.”

Na época actual a economia chinesa está profundamente ligada ao sistema capitalista internacional, pelo que, a sua resiliência merece uma atenção especial, liberta de preconceitos ideológicos, nomeadamente da visão eurocêntrica que menospreza a(s) cultura(s) americana (s) e desconsidera as culturas orientais, que mal conhece. É provável que o epíteto de “vulnerable economie”, com que a revista The Economist  em Dezembro de 2008 ainda brindava a economia chinesa,  soe agora como estranho, face ao seu comportamento em plena crise, e tanto mais que no mesmo número a revista reconhece que, actualmente,  dois terços da produção de mercadorias na China provêm de empresas que não pertencem ao sector nacionalizado, enquanto que o estado domina os sectores chave da banca, telecomunicações, energia e comunicação social. (The Second Long Marsh, pág. 29). Neste artigo, citando as estatísticas do Banco Mundial, The Economist ilustra com três quadros o progresso da democracia económica na China, nos últimos trinta anos, sem nunca mencionar aquele conceito: 200 milhões de cidadãos retirados à pobreza, o quadruplicar do rendimento da população rural e um crescimento de 70% da produção de cereais, num país continental que, em comparação com a Europa, possui apenas 40% de terra arável.

Neste contexto, as propostas dos subscritores da Carta 08 significam o desmantelamento do sector estatal e a sua privatização mundial, que constituiu a base da resistência da economia chinesa aos efeitos devastadores da crise financeira ocidental e o suporte da “economia de mercado socialista” e da redistribuição da riqueza nacional, traduzida no na nova fórmula do Artº 6º da Constituição da República Popular da China (1999)”. «A base do sistema económico socialista da República Popular da China é a propriedade pública socialista dos meios de produção, designadamente a propriedade de todo o povo e a propriedade colectiva do povo trabalhador. O sistema de propriedade pública substitui o sistema de exploração do homem pelo homem e aplica o princípio «de cada um conforme as suas capacidades, a cada um segundo o seu trabalho» «No período inicial do socialismo, o Estado persiste no sistema económico fundamental, tendo por principal a propriedade pública com o desenvolvimento conjunto da economia de propriedades diversificadas, e no sistema de distribuição tendo por principal «a cada um segundo o seu trabalho» com a coexistência de meios diversificados de distribuição.»

Por outro lado, o maior feito do regime chinês, designado de República Popular (democracia popular), é ter tirado 500 milhões de camponeses sem terra da miséria, restituindo-lhes a posse da terra que tornaram agricultável ao longo de quarto mil anos de civilização (Artigo 17° da Declaração Universal dos Direitos do Homem: Toda a pessoa, individual ou colectivamente, tem direito à propriedade) e tê-los libertado do flagelo dos senhores da guerra, e conquistado a paz, a coexistência pacífica entre 56 nacionalidades, instrução, cuidados primários de saúde e assistência social básica.

Ora a proposta de Liu Xiaobo e do seu grupo, de liberalização do comércio da terra, significa, em qualquer sistema económico, a concentração da propriedade rural privada e a concorrência ruinosa para os pequenos agricultores e as suas cooperativas.

O contrário, o novo Artº 8º que resulta da revisão constitucional já citada, harmoniza os direito á posse e usufruto pessoal da terra cultivada, com a competitividade no mercado através da organização cooperativa: «As unidades colectivas económicas rurais aplicam o sistema de exploração de dois estratos integrados de unificação com a separação, tendo por base a exploração por meio de contrato do agregado familiar. Pertencem ao sector da economia socialista de propriedade colectiva do povo trabalhador todas as formas de economia cooperativa de produção, distribuição e circulação, de crédito e de consumo. Os trabalhadores que são membros de unidades colectivas económicas rurais têm o direito de, nos limites definidos pela lei, cultivar parcelas aráveis e terrenos montanhosos destinados a uso particular e o direito de se dedicar a uma economia auxiliar e à criação de gado por conta própria.»

Finalmente, os autores da Carta 08 omitem qualquer crítica às nebulosas sociedades financeiras, alojadas no coração dos estados democráticos, como a Suiça, o Mónaco francês, a inglesa Gibraltar e na própria China de Hong Kong e que estão na origem da actual crise, constituindo um novo poder global acima dos estados e do direito internacional, que funciona sem pátria nem moral, na procura de lucros instantâneos e especulativos, ameaçando a própria estabilidade do sistema bancário e do estado democrático, porque, ao contrário destes, nada as vincula à economia social e ao controle da lei.

A China e a questão da (s) democracias (s)

Em nenhum dos artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos se consagra o modelo de democracia ocidental como o modelo ideal da democracia política. Isto é, o regime em que, apesar do pluripartidarismo, o poder está monopolizado numa oligarquia de dois partidos, a liberdade na comunicação social conduz à sua concentração e ao predomínio de um punhado grupos monopolistas e a democracia económica jamais se pode realizar, pela natureza do próprio capital e da sua dinâmica de concentração e exploração do trabalho e da natureza do próprio estado social moderno: O estado social não serve apenas os proletários em farrapos e os pobres do campo, ajuda igualmente os banqueiros em crise e socializa regularmente os prejuízos causadas na economia pela actividade privada, sobretudo os custos ambientais.

Leia-se a transcrição do Artigo da Declaração Universal que directamente trata esta questão política:

“Artigo 21°

  1.  Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direcção dos negócios públicos do seu país, quer directamente, quer por intermédio de representantes livremente escolhidos.
  2.  Toda a pessoa tem direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do seu país.
  3. A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos: e deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto.”

O Congresso Nacional Popular da República Popular da China é o órgão supremo do poder político. O seu órgão permanente é a Comissão Permanente do Congresso Nacional Popular. (Artigo 57.º da Constituição)

O Congresso Nacional Popular e a sua Comissão Permanente exercem o poder legislativo do Estado. (Artigo 58.º)

A divisão administrativa da República Popular da China apresenta três níveis principais (Artigo 30.º) :

1.º O país divide-se em províncias, regiões autónomas e municipalidades directamente dependentes do Governo Central;

2.º As províncias e as regiões autónomas dividem-se em prefeituras autónomas, distritos, distritos autónomos e cidades;

3.º Os distritos e os distritos autónomos dividem-se em cantões, cantões de nacionalidades e vilas.

No 3º nível as eleições são directas e permitem constiuir os Congressos Populares. Estes, compostos pelos delegados eleitos, elegem os seus mandatários aos níveis superiores do Estado, que por sua vez escolhem os respectivos governos. No topo, o Congresso Nacional Popular, que equivale à nossa Assembleia da República, elege o governo central, mas, diferentemente do nosso país, elege também a Presidência da República e do Supremo Tribunal, tal como a Comissão Militar Central.

A China introduziu no seu sistema político uma limitação constitucional à eleição para os mais altos cargos do estado a dois mandatos de 5 anos consecutivos, nomeadamente da Presidência da Assembleia Nacional Popular, Presidência da República e 1º ministro, e da Presidência do Supremo Tribunal Popular, a fim de combater o risco de constituição de grupos de interesses, medida que tem um alcance universal face á história recente do culto da personalidade nos regimes socialistas e à constituição de oligarcas e oligarquias inamovíveis, de dois partidos gêmeos, nas democracias ocidentais.

Em paralelo, no seio do Partido Comunista Chinês, as listas para os orgãos dirigentes passaram a ter mais candidatos que os lugares disponíveis, a fim de ampliar a liberdade de escolha. O PCCH face ao surto de reforma e desenvolvimento dos últimos 30 anos, evoluiu internamente para a abertura a elementos de novas classes sociais, tradicionalmente classificadas como “burguesas e capitalistas”.

Existem no país oito partidos que foram criados durante o período anterior  à fundação da República Popular da China, denominado Guerra de Resistência à Agressão Japonesa e a Guerra de Libertação da China, com base numa aliança com o Partido Comunista da China: Os presidentes dos comitês centrais dos oito partidos democráticos são vice-presidentes do Comitê Permanente da Assembleia Popular Nacional e da Comissão Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês.

Os candidatos aos mandatos nos diversos níveis de Congressos Populares (Assembleias legislativas) são propostos pelo Partido Comunista Chinês_PCCH, mas não têm que ser obrigatoriamente comunistas. Trata-se, aliás, de uma medida que não é estranha à tradição maoista, que exortava o Partido a apoiar-se nos “empresários e intelectuais patriotas”, nomeadamente os que constituíam a diáspora chinesa.

Existe igualmente na China uma forma de democracia directa, que é a eleição dos conselhos de aldeia, generalizada a partir da década de 80 e, depois de 1998, aberta a candidatos independentes, envolvendo 700 milhões de camponeses da China.

As 56 nacionalidades da China vêm a sua autonomia política respeitada, não apenas na preservação e ensino da sua língua e cultura, como através da eleição dos seus próprios representantes. E, ao contrário do que se divulga na opinião pública, a educação, os serviços de saúde, o apoio aos deficientes e aos direitos femininos, o respeito e cuidado com os mais velhos, são parte integrante dos direitos constitucionais e sociais generalizados sobretudo nos últimos 30 anos de República Popular.

Em Macau e Hong Kong, os acordos de integração respectivos obedeceram ao princípio de “um país, dois sistemas”, exemplo maior de democracia política, sem paralelo em qualquer outro país e que baralhou os dogmas das ciências políticas.
E, no caso em análise, talvez que as elites e os povos da China ainda não se tenham esquecido da face imperialista das democracias ocidentais, e guardem bem presente a memória histórica da ruína da economia chinesa pelo roubo do chá e o tráfico do ópio promovidos pela democrática Inglaterra do século XIX, a ocupação e as guerras da Indochina e da Coreia provocadas pelo Japão semi-feudal e capitalista e pelos seus democráticos ocupantes, os colonialistas franceses e os seus sucessores, os EUA. E, portanto, continuem a seguir outro modelo e caminho na luta pela democracia.

O mundo é mais complexo do que o modo como o representam os dogmáticos de todas as cores e é nessa diferença que reside a nossa esperança de evitar a catástrofe eminente-

AdSQ. Publicado inicialmente no Diário de Notícias, em  2011